"E por falar em historia, muito approvo, minha estudiosa Clara, que andes lendo a do divino
Budha. Dizes, desconsoladamente, que elle te parece apenas um Jesus muito
complicado. Mas, meu amor, é necessario desentulhar esse pobre Budha da densa
alluvião de Lendas e Maravilhas que sobre elle tem acarretado, durante seculos, a
imaginação da Asia. Tal como ella foi, deprendida da sua mythologia, e na sua nudez
historica, nunca alma melhor visitou a terra, e nada iguala, como virtude heroica, a
Noite do Renunciamento. Jesus foi um proletario, um mendigo sem vinha ou leira, sem
amor nenhum terrestre, que errava pelos campos da Galiléa, aconselhando aos homens a
que abandonassem como elle os seus lares e bens, descessem á solidão e á mendicidade,
para penetrarem um dia n'um Reino venturoso, abstracto, que está nos Céos. Nada
sacrificava em si e instigava os outros ao sacrificio chamando todas as grandezas ao
nivel da sua humildade. O Budha, pelo contrario, era um Principe, e como elles
costumam ser na Asia, de illimitado poder, de illimitada riqueza: casára por um
immenso amor, e d'ahi lhe viera um filho, em quem esse amor mais se sublimára: e
este principe, este esposo, este pae, um dia, por dedicação aos homens, deixa o seu
palacio, o seu reino, a esposada do seu coração, o filhinho adormecido no berço de
nacar, e, sob a rude estamenha de um mendicante, vai através do mundo esmolando e
prégando a renuncia aos deleites, [242] o aniquilamento de todo o desejo, o illimitado
amor pelos sêres, o incessante aperfeiçoamento na caridade, o desdem forte do
ascetismo que se tortura, a cultura perenne da misericordia que resgata, e a confiança na
morte...
Incontestavelmente, a meu vêr (tanto quanto estas excelsas coisas se podem discernir
d'uma casa de Paris, no seculo XIX e com defluxo) a vida do Budha é mais meritoria. E
depois considera a differença do ensino dos dois divinos Mestres. Um, Jesus, diz: «Eu
sou filho de Deus, e insto com cada um de vós, homens mortaes, em que pratiqueis o
bem durante os poucos annos que passaes na terra, para que eu depois, em premio, vos
dê a cada um, individualmente, uma existencia superior, infinita em annos e infinita em
delicias, n'um palacio que está para além das nuvens e que é de meu Pae!» O Budha,
esse, diz simplesmente: «Eu sou um pobre frade mendicante, e peço-vos que sejaes
bons darante a vida, porque de vós, em recompensa, nascerão outros melhores, e d'esses
outros ainda mais perfeitos, e assim, pela pratica crescente da virtude em cada geração,
se estabelecerá pouco a pouco na terra a virtude universal!» A justiça do justo, portanto,
segundo Jesus, só aproveita egoistamente ao justo. E a justiça do justo, segundo o
Budha, aproveita ao sêr que o substituir na existencia, e depois ao outro, que d'esse
nascer, sempre durante a passagem na terra, para lucro eterno da terra. Jesus cria uma
aristocracia de santos, que arrebata para o céo onde elle é Rei, e que constituem a côrte
do céo para deleite da sua divindade; e não vem d'ella proveito directo para o
Mundo, que continua a soffrer da sua porção de Mal, sempre indiminuida. O Budha,
esse, cria, pela somma das virtudes individuaes, santamente accumuladas, uma
humanidade que em cada cyclo nasce progressivamente melhor, que por fim se torna
perfeita, e que se estende a toda a terra d'onde o Mal desapparece, e onde o Budha é
sempre, á beira do caminho rude, o mesmo frade mendicante. Eu, minha flor, sou pelo
Budha. Em todo o caso, esses dois Mestres possuiram, para bem dos homens, a maior
porção de Divindade que até hoje tem sido dado á alma humana conter. De resto, tudo
isto é muito complicado; e tu sabiamente procederias em deixar o Budha no seu
Budhismo, e, uma vez que esses teus bosques são tão admiraveis, em te retemperar na
sua força e nos seus aromas salutares. O Budha pertence á cidade e ao collegio de
França: no campo a verdadeira Sciencia deve cahir das arvores, como nos tempos de
Eva. Qualquer folha de olmo te ensina mais que todas as folhas dos livros. Sobretudo do
que eu que aqui estou pontificando, e fazendo pedantescamente, ante os teus lindos
olhos, tão finos e meigos, um curso escandaloso de Religiões Comparadas."