segunda-feira, 30 de novembro de 2009

"Reconhece o que está diante do teu rosto"

"Jesus dizia:
Reconhece o que está diante do teu rosto
e o que te é oculto te será desvelado"

- Evangelho de Tomé, 5.

Agantuka Sutta: Para todos os que vêm


Agati Sutta: fora do rumo
Traduzido a partir da versão inglesa de
Maurice O'Connell Walshe, in
http://www.accesstoinsight.org/tipitaka/sn/sn45/sn45.159.wlsh.html

“Suponde, praticantes, que há uma hospedagem. Viandantes vêm do leste, do oeste, do norte, do sul para se hospedarem nela: nobres e brahmanes, mercadores e servos. Da mesma forma, praticantes, um praticante que cultive o Nobre Caminho Óctuplo, que pratique assiduamente o Nobre Caminho Óctuplo, compreende, com o mais elevado conhecimento, que esses estados são para ser assim compreendidos; abandona, com o mais elevado conhecimento, esses estados que são para ser abandonados dessa forma; e cultiva, com o mais elevado conhecimento, os estados que são para ser cultivados dessa forma; chega à experiência, com o mais elevado conhecimento, desses estados que são para ser experienciados dessa forma, e cultiva, com o mais elevado conhecimento, os estados que são para ser cultivados dessa forma.”
“Quais, praticantes, são os estados a serem compreendidos com o mais elevado conhecimento?”
“São os cinco grupos do apego. Quais? O grupo do corpo, o grupo das emoções, o grupo da percepção, o grupo das formações mentais, o grupo da consciência...”
“Quais, praticantes, são os estados a serem abandonados com o mais elevado conhecimento?”
“São a ignorância e ambição.”
“E quais, praticantes, são os estados a serem experienciados com o mais elevado conhecimento?»
“São a Sabedoria e a Libertação.”
“E quais, praticantes, são os estados a serem cultivados com o mais elevado conhecimento?
“São a calma e a absorção meditativa (insight).”
“E como um praticante que cultiva o Nobre Caminho Óctuplo, que assiduamente pratica o Nobre Caminho Óctuplo, compreende…, abandona…, chega à experiência…, cultiva… com o mais elevado conhecimento esses estados que são para serem dessa forma compreendidos, abandonados, experienciados, cultivados?”
“Desta forma , praticantes: um praticante cultiva a Visão Recta... A Recta Concentração que se baseia no desapego, na serenidade, levando à maturidade da entrega total. Dessa forma ele, ou ela, compreende..., abandona..., chega à experiência..., cultiva, com o conhecimento mais elevado, aqueles estados que são para serem dessa forma compreendidos, abandonados, experienciados, cultivados."

sábado, 28 de novembro de 2009

Recordações do Curso de Budismo Tibetano

Disse Tsering Paldron, no curso intensivo de Budismo Tibetano realizado na UBP em Lisboa no ano passado o seguinte: para nós, praticantes da via de Buda, meditarmos todos os dias, mesmo naqueles em que não há vontade para isso, pois mais tarde iríamos recolher o fruto. Recordo-me também de ouvir numa das suas aulas que a verdadeira liberdade reside em não fazer aquilo que desejamos. Que belo curso! Julgo que na minha vida não aprendi tanto como aprendi naqueles Sábados magníficos, a ouvir a acutilância de Paulo Borges, o eruditismo de António Teixeira e a bondade e erradiância alegre e iluminada de Tsering Paldron.

Mas, para além de aprender, frisavam eles muitas vezes que os ensinamentos assemelham-se a uma jangada que nós usamos para atravessar um rio e que uma vez alcançada a outra margem - a margem da iluminação - que seria um fardo acarretá-la às costas, ou seja, era preciso abandoná-la. Sabedoria de Buda Shakhiamuni, creio eu... Em dezoito anos de escola frequentados por mim desde menino até  adulto, nunca tal sabedoria me fora transmitida. E no entanto, julgo ser das afirmações mais profundas que ouvi. E no entanto, na escola aprendi a ser adulto para agora querer desaprender e voltar a ser menino.

Diziam os professores que fazer discursos sem aplicar as suas ideias à vida quotidiana era idêntico a proferir palavras vãs, uma acção causadora de véus mentais. Não me esquecerei aquele episódio quando, num intervalo, o professor António Teixeira deixa cair, acidentalmente sobre a sua roupa, água quente para fazer chá... Impávido e sereno, o professor foi buscar um pano e resolveu a situação... Não é esta uma situação em que as pessoas normalmente se enervam ou entram em pânico?

Quem medita com o professor Paulo Borges certamente já reparou na sua voz grave, profunda e serena com que conduz a prática. As nossas mentes inquietam-se pois são como macacos que saltam de galho em galho (como escreveu Mingyour Rinpoche), mas a sua voz, que dá a sensação de provir das profundezas da terra, corta com a ilusão dos pensamentos conceptuais e da vanidade das emoções que fluem permanentemente na nossa mente, e conduz-nos novamente para o objecto de concentração. Um dia, diz o professor, vocês não precisarão mais de objecto de concentração e passarão, simplesmente, a repousar em estado de conciência primordial, que não é nem um estado de meditação nem de não-meditação. Quando assim repousarem  dia e noite, então poderão largar a jangada...


sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Vinda do Lama Denys a Portugal

A Sangha Rimay Lusófona, em colaboração com a Sangha Rimay Internacioal, com o Projeto Filosofia e Religião (FLUL) e com o apoio da União Budista Portuguesa, está a organizar a vinda do Lama Denys Rinpoché a Portugal. O Lama Denys Rinpoché virá acompanhado pelo Lama Mingyour e permanecerá em Portugal de 27 de Novembro a 1 de Dezembro.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Conferência: "Como gerir os conflitos" (3 de Dezembro de 2009)





Conferência pública de Khenpo Tseten, subordinada ao tema "Como gerir os conflitos".

Organização: Núcleo de Estudo do Dharma de Leiria (http://nucleodharmaleiria.wordpress.com/)
Data: 3 de Dezembro de 2009
Local: Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria - Auditório 1
Contribuição: 5€
Mais informações: dharma.leiria@gmail.com

A palestra será em inglês, com tradução para o português por Tsering Paldron.

Localização da Conferência:


Ver Conferência - "Como gerir os Conflitos" - 3.12.2009 num mapa maior

Compaixão

No dia 12 de Novembro foi lançada a Carta pela Compaixão e tem havido desde esse dia centenas de iniciativas por todo o planeta relacionadas com este tema. É solicitado às pessoas que assinem a carta, ao lado de pessoas como o Dalai Lama, a Rainha Rania, Peter Gabriel, Arcebispo Desmond Tutu, Isabel Allende entre tantos outros. Uma das ideias desta Carta é que é necessário passar à acção e não nos ficarmos unicamente pelas palavras.

Na próxima sessão do Núcleo de Estudo do Dharma de Leiria faremos uma abordagem ao tema da compaixão, reservando para a segunda parte da sessão a prática de tonglen ou “a troca”, de acordo com a tradição budista. Como diz Pema Chodron: “A prática de tonglen reverte a lógica habitual de evitar o sofrimento e buscar o prazer. Nesse processo, nós nos libertamos de padrões muito antigos de egoísmo. Começamos a sentir amor, tanto por nós mesmos quanto pelos demais; passamos a cuidar de nós mesmos e dos outros. Tonglen desperta nossa compaixão e nos faz conhecer uma visão muito mais ampla da realidade.”

Noutro site encontra-se uma reflexão bem actual em que se aplicam estes princípios, denominada a sabedoria do espelho retrovisor, que vale a pena ler.Para celebrar este evento, o site TED associou-se publicando uma série de seis vídeos sobre o tema da compaixão. Estes vídeos, em inglês, abordam seis diferentes perspectivas sobre este tema, de acordo com diferentes crenças. Poderão ser um bom ponto de partida para praticar a compaixão no nosso dia-a-dia, em termos práticos.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Poemas Tibetanos de Shabkar - II

A ave divina,

a bela perdiz das neves,

Procurou a erva das pradarias

e a água das cascatas;

Agora detém-se

na fronteira das neves eternas;

Na bruma dos cumes

ressoa o seu apelo musical.


Traduzido do francês.
Traduzido para o francês por Matthieu Ricard.

domingo, 15 de novembro de 2009

Da ausência

Falta-nos alguém... aquela pessoa que nós somos realmente...
Por isso, o homem passa a vida a procurar-se...
- Onde vais tu?
- Vou atrás de mim!...
E o desgraçado corre e não descansa! De noite continua a correr... É um lobisomem...
- Repousa, pobre doido!
- Não posso! Morro de saudades por mim!
O que nos aflige e consome é esta ausência em que vivemos de nós próprios, esta distância incomensurável que nos separa do nosso espectro!
É esta saudade que nos mata!
Há quem se embriague para a esquecer. César foi César por causa dela.
E Jesus foi o Messias...

Teixeira de Pascoaes, O Bailado, Lisboa, Assírio e Alvim, 1987, p.44

sábado, 14 de novembro de 2009

Matthieu Ricard sobre os hábitos de felicidade

O que é a felicidade? Como podemos atingi-la? Mathieu Ricard, bioquímico de formação e monge budista por opção, diz-nos que podemos treinar as nossas mentes em hábitos de felicidade de forma a gerar um verdadeiro estado de bem-estar e realização.
Para ver o vídeo com legendas em português clique na opção "View subtitles" e escolha "Portuguese (Portugal)".



Natureza da mente, meditação e contemplação segundo a tradição do Dzogchen ou "Grande Perfeição"" - II

Todavia, o mesmo “yogi de ilusão”, que desreifica a fenomenalidade aparente contemplando a sua inerente vacuidade, converte-se assim igualmente num “yogi da abertura do espaço”, reconhecendo “que todos os fenómenos aparentes são o próprio espaço”, metáfora por excelência da insubstancialidade, infinidade, imutabilidade, não obstrução e inefabilidade do fundo, ou “verdadeira natureza da realidade”, que simultaneamente permite e impregna “todas as aparências possíveis”. O reconhecimento da ilusão de todas as coisas, incluindo do sujeito que as percepciona como “coisas” e a si mesmo como um “eu”, não dá lugar a um vazio niilizante, permitindo antes a plena transparência do fundo autêntico de tudo na consciência e na fenomenalidade. A própria ilusão desvanece-se assim como ilusória, tal o arco-íris, aparente mas irreal, de todas as coisas.

As “instruções essenciais” e concretas para a experiência disto são-nos dadas por um texto de Longchenpa, O Precioso Tesouro das Instruções Essenciais, que constitui uma introdução directa ao “estado desperto” na perspectiva do Dzogchen. Em contraste com os Sutras e os próprios Tantras, o modo de lidar com a “agitação mental” não consiste aqui, respectivamente, em afastar o negativo e cultivar o positivo ou em transformar o negativo em positivo, tratando-se antes de experimentar essa agitação como “naturalmente imaculada na sua pureza e liberdade”, a própria “intemporal consciência desperta” onde emerge, tal “uma brisa movendo-se através do céu”. Há que experimentar esta “consciência desperta”, a luminosidade de shunyata/tong pa nyid (vacuidade) enquanto fundo matricial de todos os fenómenos, como limpidez livre dos extremos da clareza e do obscurecimento, “constante unidade da mente e do que percepciona”, “infinita igualdade” livre das “fixações da esperança e do medo”, “vastidão de ser” e “verdadeira natureza da realidade” onde “todos os pensamentos prontamente se dissolvem”, incluindo os conceitos de “origem, cessação e duração” dos mesmos, subsumindo-se todos os processos discursivos na natureza primordial da “própria mente”, “esfera única de ser” que confere o “sabor único subjacente às coisas em toda a sua diversidade”. Mantendo apenas uma consciência não interventiva nos processos mentais, por maior que seja a turbulência conceptual-emocional, eles auto-libertam-se naturalmente, tal como um lago de águas agitadas e turvas se torna progressivamente sereno e transparente se for deixado entregue a si mesmo, sem nenhuma tentativa de apaziguar a sua ondulação, o que apenas a aumentaria. Deste modo o praticante imerge no “fluxo contínuo do ser genuíno”, tornando a sua visão, meditação e conduta capazes de suportar todas as “circunstâncias” emergentes, que assim reconhece integradas na experiência desperta.

Num capítulo com indicações práticas sobre como abarcar os próprios “conceitos” como “aliados” da consciência desperta, Longchenpa enumera seis modos de o fazer: 1 – mantendo-se uma “contínua consciência da consciência conceptual como se fosse uma suave brisa, que em e por si mesma se extingue”, experimentar-se-á o íntimo emergir da “intemporal consciência desperta naturalmente ocorrente”; 2 – treinando-se contemplar a agitação mental como um “relâmpago no céu, em e por si mesmo puro”, experimentar-se-á tudo o que agite a mente como a natural lucidez da “intemporal consciência desperta”; 3 – mantendo-se uma “contínua consciência da consciência como se fosse uma pequena ondulação na água, em e por si mesma baixando”, experimentar-se-á o emergir de todos os estados de consciência como o estado iluminado “naturalmente ocorrente”; 4 – mantendo-se uma “contínua consciência de quaisquer conceitos como aliados” e “expressões da verdadeira natureza da realidade”, sem “aceitação ou rejeição”, experimentar-se-á o mesmo íntimo emergir do estado iluminado; 5 – mantendo-se uma “contínua consciência” das próprias fixações perceptivas como “aliados” que naturalmente se dissolvem sem objecto residual, experimentar-se-á o mesmo emergir da “intemporal consciência desperta”, “sem base fixa”, ao mesmo tempo que se percepcionarão as “coisas” como “evanescentes”; 6 – mantendo-se uma “contínua consciência da radiância natural da consciência desperta” como a própria “vastidão lúcida do ser”, experimentar-se-á o seu fundo emergir como algo “vívido que todavia não deixa traços”. Como conclusão, quem assim praticar, imergindo no “ser genuíno”, experimentará a “intemporal consciência desperta a emergir dos próprios pensamentos”. Remata Longchenpa: “É absolutamente essencial que experimentem todas as coisas manifestando-se como os vossos aliados, / tal como pilhas de madeira seca nutrem um grande fogo”.

Passa-se assim da meditação, enquanto processo ainda intencional da consciência, que se foca analiticamente ou não num objecto, que pode ser ela mesma, enquanto puro acto de estar consciente, para uma plena abertura contemplativa em que apenas há que descontrair completamente o corpo e a mente e “repousar à-vontade”, sem “aceitar ou rejeitar” qualquer fenómeno sensível ou mental, numa “frescura não artificial, tal qual”. Deixando que todos os pensamentos, percepções e emoções, todas as formas de “agitação ou turbilhão mental”, se auto-libertem, ou seja, se dissolvam naturalmente na “natureza última da realidade”, este modo de repousar equivale a “residir na não-dualidade”, conduzindo seguramente a experienciar a emergência do estado iluminado “como uma ampla vastidão livre de limitações”.

Nisto consiste a descoberta da “jóia da própria mente no seu íntimo”, o que liberta do temor da morte ou da “transição para outra vida”. Na verdade, vendo-se que a “verdadeira natureza da própria mente é ultimamente o estado de Budeidade”, é-se “livre da escravidão causada pela esperança e pelo medo”. Se Longchenpa declara que “alguém assim imerso no ser genuíno é um Buda manifesto”, logo esclarece não haver “alguém” que “tenha tal realização/tomada de consciência”. O Despertar é sem sujeito pois é o despertar do sonho/pesadelo da id-entidade separada. Não conduz assim ao “auto-enaltecimento”, estabelecendo o “yogi da ilusão” (de haver ilusão e seu sujeito) num estado para além de qualquer “comparação”: o estado natural da mente, agora mesmo, a cada instante.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Natureza da mente, meditação e contemplação segundo a tradição do Dzogchen ou "Grande Perfeição"" - I



- Longchenpa

Publico o início da comunicação que apresentarei no Sábado, dia 14, pelas 11.30, no 3º Simpósio Internacional "Fronteiras da Ciência", A Humanidade e o Cosmos, organizado pelo Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência da Universidade Fernando Pessoa (Porto), em 13 e 14 de Novembro. A presente versão não tem notas de rodapé.

...

A presente comunicação visa introduzir à experiência meditativa e contemplativa da natureza última da mente e dos fenómenos segundo a tradição budista tibetana do Dzogchen, ou "Grande Perfeição", a partir de textos de dois dos seus mais eminentes representantes, ambos pertencentes à escola dos Antigos ou Nyingmapa: Longchenpa (1308-1363) e Dudjom Lingpa (1835-1904). Considerado, na classificação da mesma escola, e na perspectiva da via gradual (lam rim), como o último e supremo dos nove veículos para o reconhecimento da natureza primordial da mente e de todos os fenómenos - a natureza de Buda, designação não de uma figura histórica, mas do pleno desvendamento da realidade última - , o Dzogchen é todavia, em si mesmo, não propriamente uma via ou um veículo, mas o próprio estado de experiência imediata da perfeição natural e absoluta de todas as coisas, independente dos métodos e práticas que o podem preparar e mesmo de qualquer tradição, religião ou escola específicas.

Começamos por um texto de Dudjom Lingpa, Nang-jang, Refinar os Fenómenos Aparentes, cujo início descreve a constituição da experiência condicionada de si e do mundo e a sua ausência de fundamento. Se analisarmos, aquilo que se designa como o “si mesmo da personalidade individual” não consiste senão numa “impressão de que existe um si mesmo”, seja na vigília, no sonho ou no bardo – o estado intermediário entre uma morte e um renascimento. Porém, “seguindo imediatamente essa primeira impressão, há uma consciência subjacente” – também designada como “consciência subsequente ou “pensamento discursivo” - que considera essa impressão como sendo um “eu””. Isso parece tornar “mais clara”, “estável e sólida” a “impressão do si mesmo”, se bem que, se tentarmos localizar a fonte originária do dito “eu”, tenhamos de concluir que ela não existe.

Trata-se com efeito de investigar, a respeito do assim chamado “eu”, se podemos determinar-lhe uma “localização” e um “agente localizado”, existentes como “entidades” “individualmente identificadas” e com “características ultimamente definidoras”. Se procurarmos essa id-entidade com características irredutíveis que designamos com a etiqueta “eu”, no corpo e em cada uma das suas partes, ou na sucessão dos momentos de consciência, não a encontramos nem ao seu lugar, o que se converte na certeza acerca da sua “vacuidade” (tong-pa-nyid). Verificando-se, pela experiência analítica que corrige a irreflectida crença conceptual subjacente à experiência comum, não haver senão “a aparência de algo existente onde nada existe”, designar algo como um “eu” revela-se equivalente a “descrever os chifres de um coelho”.

A mesma análise deve estender-se então à suposta natureza intrínseca dos fenómenos integrantes da esfera do não-eu, animados ou inanimados. Se procurarmos a “base da designação” dos “nomes” que lhes atribuímos, ou seja, “os objectos últimos aos quais todos os nomes se aplicam”, verificaremos ser impossível estabelecer a auto-sustentação de qualquer fenómeno que seja, em si e por si. Deste modo, a sua nomeação “em nada mais redunda do que na aplicação de etiquetas ao que não existe”, pelo impulso entusiástico “responsável pelo pensamento conceptual”. A análise da natureza última das coisas vem pôr fim a esse impulso, convidando à abolição dos “conceitos da aparente permanência de entidades substanciais” e objectivamente existentes ao mostrar nelas a mesma “vacuidade” antes reconhecida ao “eu”. É suposto que esta constatação, caso se converta numa experiência constante, tenha como efeito a libertação de todos os condicionamentos mentais, suscitando nomeadamente o colapso da ilusão do benefício e da ofensa, da esperança e do medo.

Até aqui, a abordagem mantém-se na esfera do budismo primitivo e, particularmente, do Mahayana, que enfatiza a sabedoria consistente no reconhecimento da dupla vacuidade, do eu e dos fenómenos, como na paradigmática obra de Nagarjuna, as Estâncias da Via do Meio. Sabedoria indissociável da compaixão imparcial e universal pelo sofrimento de todos os seres vítimas das suas próprias ilusões mentais e das emoções e acções-reacções por elas suscitadas. Tal como são inseparáveis a verdade absoluta, trans-conceptual e trans-emocional, e a relativa, referente à experiência conceptual-emocional do mundo, assim o são a sabedoria, o amor bondoso e a compaixão.
A especificidade do Dzogchen manifesta-se todavia, para além da dialéctica desconstrutiva de todas as visões do mundo, exacerbada em Nagarjuna e na escola Madhyamika, no aprofundamento da natureza da experiência da realidade como uma “interdependência de causas e condições” reunidas, onde se destaca, no íntimo dos doze nidanas - ou elos da produção interdependente que estrutura toda a experiência condicionada de si e do mundo, desde a ignorância até ao nascimento e à velhice e morte - , um fundo primordial inato, livre de todo o condicionamento e, por isso mesmo, eminentemente fecundo. Há assim um ”factor causal” e um “factor condicionante”. O primeiro é shi ying, “o fundo do ser como espaço fundamental, subtilmente lúcido e dotado da capacidade para que tudo apareça”. O “espaço fundamental”, ying, designa a própria vacuidade, que aqui surge, não como mera ausência de pontos de vista sobre as coisas, a qual, como em Nagarjuna, dissolve o haver “coisas” na abstenção de qualquer modo de predicação – A, não A, A e não A, nem A nem não A - , mas antes como a matriz da fenomenalidade universal, indissociável da luminosidade da consciência primordial e da potência manifestativa, as quais constituem no Dzogchen a tríade de aspectos da intemporal natureza de Buda e o sentido mais profundo da Tripla Jóia, Buda, Dharma e Sangha. Quanto ao “factor condicionante”, “é uma consciência que imagina um «eu»”, ou seja, a mesma “consciência subjacente”, “subsequente” ou discursiva atrás referida, que interpreta erroneamente a impressão de existir um “si mesmo”, cristalizando-a na ficção de um “eu” substancial. Da união dos dois factores, “causal” e “condicionante”, “todos os fenómenos aparentes se manifestam, como ilusões”.

A experiência da realidade fenoménica, externa e interna, procede assim da “conexão interdependente” do fundo primordial de tudo com a modalidade de consciência reificante que o vela, mas que não deixa de emergir a partir de si e, mais concretamente, da sua “energia dinâmica” (tsel), a potência ou virtualidade manifestativa atrás referida. Como diz o texto: “Deste modo, o fundo do ser como espaço fundamental (shi-ying), a mente comum (sem) que surge da energia dinâmica (tsel) desse fundo e os fenómenos externos e internos que constituem o aspecto manifesto dessa mente comum estão todos interligados (lu-gu-gyüd), como o sol e os seus raios”. A visão da “Grande Perfeição” assume a presença, em termos mais positivos do que na dialéctica negativa e desconstrutiva das outras abordagens budistas, de um incondicionado cuja funcionalidade consciente e manifestativa permanece inerente a isso mesmo que dela surge como sua distorsão e encobrimento, refractando-a nas aparências já conceptuais e dualistas do absoluto e do relativo ou do nirvana e do samsara, ultimamente ilusórias. Por mais obscurecedora e densa que possa parecer a experiência reificada do eu e do mundo, isto significa que a sua natureza íntima, a cada instante susceptível de ser reconhecida e fruída, é livre de todos os condicionamentos adventícios, que em verdade não possuem fundamento real, pois não procedem senão de uma incompreensão da natureza do processo, a ignorância (ma-rigpa), revogável mediante a meditação analítica e contemplativa.

Toda a infinita variedade dos fenómenos assim se manifesta como algo que em si e por si não existe, pois jamais difere substancialmente da omnipenetrante e lúcida vastidão da vacuidade do “fundo” primordial, que apenas aparece dividida nas esferas do si mesmo e do outro devido à concepção de um “eu” que a força aos “estreitos confins” de uma consciência subjectiva e conceptual e padece a “confusão” de conferir realidade ao que a não tem, ele mesmo e o outro de si, tornada um “hábito arreigado”. Deste modo se constitui a percepção convencional da realidade, de si e do mundo, karmicamente distribuída pelas seis possibilidades de existência e pelos estados de vigília, sonho e bardo, que metaforicamente se descrevem “como a aparência de uma ilusão mágica (gyu-ma)”, uma “miragem (mig-gyu)”, um “sonho (mi-lam)”, um “reflexo (zug-nyan)” num espelho, “cidades” visionárias (dri-zai drong –khyer), “ecos (drag-cha)”, “reflexos de todos os planetas e estrelas no oceano (gya-tsoi za-kar)”, só aparentemente diversos mas na verdade indistintos da própria água, “bolhas formando-se na água (chu-bur-gyi bu-wa)”, uma “alucinação (mig-yor)” e uma “emanação” fantasmática (trul-pa). Meditar e contemplar deste modo todos os fenómenos conduz a vê-los como “ilusões” (gyu-ma), tornando-se o praticante num “yogi de ilusão”.

(continua)

Um sorriso...


Sua Santidade o Dalai Lama

O mundo foi, como é o Sol, uma esfera de oiro incandescente. Esse oiro persiste ainda em certas criaturas; corre-lhe nas veias com o sangue e é um sorriso que elas têm... Um sorriso... vede as asas da alegria!...

Teixeira de Pascoaes

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Atta Dipa

ATTA DIPA
VIHARATHA
ATTA SARANA
ANANNA SARANA
DHAMMA DIPA
DHAMMA SARANA
ANANNA SARANA

és a Luz

confia em ti

em nada mais

o Dharma é a Luz

confia no Dharma

em nada mais



"Atta Dipa" é a transcrição das palavras do Buda, na sua língua, o Pali, tais como as disse aos seus discípulos há 2500 anos atrás. "Atta" é "eu;" "Dipa" luz, e a palavra seguinte "viharatha" exprime a sua identidade. Na tradução "Tu és a própria luz." O que significa a identidade do eu e da luz? Por vezes ouvimos pessoas falar de luz interior, como se fosse uma centelha do divino dentro de nós, ou como se a luz fosse a nossa verdadeira natureza, de uma certa forma “enterrada” dentro do nosso eu de todos os dias, ou falso eu. Mas penso que não é isso o que o Buda quis dizer. Não quis dizer que temos uma luz dentro de nós, diz que SOMOS luz.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Agati Sutta: fora do rumo

Agati Sutta: fora do rumo

Traduzido a partir da versão inglesa de

Thanissaro Bhikkhu, in


www.acesstoinsight.org

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“Existem quatro vias que nos põem fora do rumo. Quais? Vamos fora do rumo através do desejo. Vamos fora do rumo através da aversão. Vamos fora do rumo através da delusão. Vamos fora do rumo através do medo. Estas são as quatro vias que nos põem fora do rumo"


"Se tu — pelo desejo,

aversão,

delusão,

medo —

transgredires o Dhamma,

a tua honra desvanece,

como no quarto minguante,

a lua.”


“Existem quatro vias que não nos põem fora do rumo. Quais? Não vamos fora do rumo através do desejo. Não vamos fora do rumo através da aversão. Não vamos fora do rumo através da delusão. Não vamos fora do rumo através do medo. Estas são as quatro vias que não nos põem fora do rumo."


"Se tu — pelo desejo,

aversão,

delusão,

medo —

não transgredires o Dhamma,

a tua honra resplandece,

como no quarto crescente,

a lua.”