O que se pode perguntar para um mestre que escreveu
uma obra tão profunda e completa como O Livro Tibetano do Viver e do Morrer?
Como estar em sua amorosa presença e ainda conseguir direcionar a
entrevista para obter mais informações sobre os temas abordados por ele? Um
simples encontro e o prolongado aperto de mão, que durou durante todo o tempo
em que estivemos juntos em São Paulo, foram suficientes para acalmar meu
coração. Rinpoche responderia as perguntas feitas anteriormente durante a
palestra e direcionaria as respostas abordando a questão da morte e da
importância de se estar na natureza da mente, os dois pontos centrais das questões
enviadas a ele por e-mail. Fui autorizada a usar trechos de seus ensinamentos
realizados tanto em São Paulo, como os do Rio de Janeiro e Porto Alegre, com
exceção daqueles que antecediam imediatamente a transmissão direta feita em
pleno auditório da capital paulista, sem ngondro, e para pessoas de diversas
tradições.
Nunca em sua vida Rinpoche daria tão abertamente esses
altos ensinamentos relativos ao Dzogchen, finalizados pela fortíssima e
inesperada transmissão direta destinada ao atento público presente na palestra
A Quintessência do Livro Tibetano do Viver e do Morrer, em São Paulo. “Dei a
transmissão porque vi que havia condições auspiciosas para isso”, me disse ele
depois com sorriso. Rinpoche também havia se referido ao fato de que não sabia
se voltaria de novo ao Brasil. Portanto, estar junto ao público brasileiro
poderia ser uma oportunidade única, que certamente ele não quis desperdiçar.
Nesta edição da revista Bodisatva você poderá ler as respostas de Rinpoche
sobre a vida e a morte, e na Bodisatva online, um extenso relato sobre a
natureza da mente. Acompanhe agora suas palavras.
Bodisatva:
Por que temos tanto medo da morte?
Sogyal Rinpoche:
Porque por trás do medo da morte está o medo de encarar a si mesmo. O instante
da morte é o momento da verdade. Ela é como um espelho, no qual o verdadeiro
sentido da vida está refletido. Na tradição monástica cristã há uma expressão
em latim, memento mori, que significa lembre-se da morte, ou mais
especificamente, lembre-se de que vai morrer. Se você se lembrar da morte, vai
entender o que é a vida. A morte é a fundação e o verdadeiro coração do caminho
espiritual. Se você se recordar de que vai morrer, vai se lembrar da
preciosidade da vida – e essa verdade está presente em todas as grandes
tradições: budismo, cristianismo, hinduísmo… Pensar na morte é o cerne do
caminho espiritual. Milarepa, o grande santo e poeta que inspirou milhões de
seres, disse: Aterrorizado pela morte, refugiei-me nas montanhas, meditei
muitas e muitas vezes sobre a incerteza da hora da morte. Mas ao conquistar a
fortaleza da natureza da mente infinita e imortal, todo o medo acabou para
sempre. É por isso que o meu livro fala tanto dessa contemplação da hora da
morte. Existe também uma citação de Maomé. Quando perguntaram a ele como
você faz para polir o coração, como você se livra da ferrugem, das aparas do
coração? Maomé respondeu: Pela lembrança de Deus e por muito pensar na morte.
De fato, pensar na morte é muito próximo de se pensar em Deus, porque a morte
traz para você o que Deus é. Mas infelizmente, na vida contemporânea as pessoas
não vêem a vida e a morte como um todo. Com isso ficam muito apegadas à vida e
rejeitam e renegam a morte. Hoje em dia as pessoas também pensam na morte como
um tipo de derrota ou de perda. Mas do ponto de vista espiritual, a morte não é
uma tragédia a ser temida, mas uma oportunidade preciosa para a transformação.
Bodisatva:
Só que nos esquecemos de lembrar da morte durante a vida, estamos ocupados
demais para isso.
Sogyal Rinpoche:
Sim, nos mantemos muito atarefados o tempo todo: é uma preguiça ativa (risos).
A morte, por sua vez, nos diz que é preciso parar de nos enganar – quando você
acertar as contas com a morte você acerta as contas com sua vida. A morte é o sinónimo
da vida, o seu prolongamento; na verdade, ela é a parte mais importante da
existência, por isso é que ela acontece no final! (risos). É a morte que vai
nos apresentar a conta. Tem uma expressão em francês que diz: Agora, a
dolorosa, por favor! (risos). Mas com frequência, só começamos a pensar na
morte quando estamos para morrer. Não é um pouco tarde demais? Os ensinamentos
nos mostram que deveríamos nos preparar para morrer agora, quando estamos bem,
com estado mental feliz, principalmente nos momentos em que você está
inspirado, predisposto à introspecção, quando começamos a ver a vida e a morte
de uma maneira mais profunda.
Bodisatva:
O que dizer ou fazer quando se está ao lado de uma pessoa que vai morrer?
Sogyal rinpoche:
Sempre que você estiver com uma pessoa que está morrendo, enfatize o que ela
realizou de bom durante a vida, o que ela fez bem. Ajude-a a se sentir tão
construtiva e feliz quanto possível com relação à existência dela. Concentre-se
nas suas virtudes e não nos seus defeitos. A pessoa que está morrendo fica
muito vulnerável à culpa, ao remorso e à depressão. Permita que ela expresse
isso livremente, ouça-a e escute o que ela diz. Mas, ao mesmo tempo, se o
momento for apropriado, não deixe de lembrá-la da sua natureza búdica e
encorajá-la a repousar na natureza da mente. Em especial, lembre à pessoa que a
dor e o sofrimento não são tudo o que ela é. Encontre a maneira mais hábil e
sensível de inspirá-la e dar-lhe esperança, ao invés de enfatizar seus erros.
Assim ela poderá morrer num estado mental mais pacífico.
Bodisatva:
Qual a melhor maneira de estar ao lado de quem vai morrer?
Sogyal rinpoche:
Acho muito importante dizer isso: quando você ajudar alguém nessa condição, o
mais importante não é o que você diz, mas o que você é, a sua presença. E a sua
presença é especialmente importante se você for um praticante que tem a
realização da natureza da mente e puder permanecer nesse estado de realização
na presença daquele que está morrendo. Isso é extremamente poderoso. Vejo isso
por mim mesmo: nessa presença, o amor que é sustentado pela natureza da mente é
o amor apoiado pelos budas. Você se torna como um embaixador deles. O amor
inspirado pela natureza da mente é tão poderoso que pode eliminar o medo do
desconhecido. Se você puder introduzir essa paz – sentindo muita paz, vendo a
natureza da mente se manifestando de uma forma muito poderosa, como uma
radiação quente – se você conseguir isso será extraordinariamente poderoso e
benéfico.
Bodisatva:
O que mais pode contribuir para que a pessoa sinta um maior conforto
psicológico e espiritual nesse momento?
Sogyal Rinpoche:
A pessoa que está morrendo precisa ter a coragem de perceber que esse é o tempo
da reconciliação com amigos e parentes, e assim eliminar do coração todo ódio e
ressentimento. Nem todos crêem numa religião formal, mas acho que quase todos
acreditam no perdão, e você pode ser de incomensurável utilidade para a pessoa
que vai morrer ajudando-a a ver a aproximação da morte como o tempo perfeito
para reconciliação e a avaliação de uma vida. Todas as religiões dão ênfase ao
poder do perdão, que nunca é tão necessário e tão profundamente sentido como no
momento da morte. Por meio do perdoar e do ser perdoado, nos purificamos da
escuridão gerada por aquilo que fizemos e nos preparamos para a jornada através
da morte. Com base na sua prática espiritual, você pode transformar o ambiente
e inspirar sentimentos sagrados como amor, compaixão e devoção na mente da
pessoa que está morrendo, no momento da sua morte.
Bodisatva:
E como ajudar uma pessoa assustada que não tem nenhuma crença espiritual?
Sogyal Rinpoche:
Um conselho simples é: olhe nos seus olhos com amor e confiança, seja claro,
invoque a presença dos Budas ou de Cristo e dê-lhes o ensinamento essencial
porque no momento da morte eles vão estar abertos a isso, particularmente se
você for genuíno e autêntico e não estiver pregando. Outra coisa importante
quando formos ajudar alguém que está morrendo é dar o nosso amor, com todo o
coração, sem quaisquer condições, tão livres quanto possível de apego, sem
medo, destemidamente, amar.
Bodisatva:
E se a pessoa não quiser falar sobre a morte ou não aceitar que está
morrendo?
Sogyal Rinpoche:
Você ainda pode amá-la, dizer coisas amorosas sem mencionar a morte. Se
entramos em contato com a natureza da nossa mente, se a estabilizamos através
da nossa prática espiritual e a integramos às nossas vidas, então o amor que
temos para dar só pode ser profundo, porque vem de uma fonte mais profunda, do
nosso ser mais interno, que é o coração da nossa natureza iluminada. Esse
coração tem um poder especial de libertar a nós mesmos ou a alguém que esteja
morrendo. Esse tipo de amor, que é o amor além de todo apego, é como o amor
divino de que se fala tanto no cristianismo quanto no hinduísmo; é o amor de
todos os budas. Nesse estado sem fabricação, mesmo sem pensar, podemos sentir a
presença de Buda sem esforço. É como se tivéssemos nos tornado o representante
dele, com nosso amor apoiado pelo seu amor e infundido com a sua bênção e
compaixão. O amor que brota verdadeiramente da natureza da mente é tão
abençoado que tem o poder de dissipar o medo do desconhecido, de dar refúgio à
ansiedade e de dar serenidade, paz e, além disso, trazer inspiração na morte e
além dela. E descobriremos por nós mesmos que quanto mais conseguirmos
purificar nossa prática espiritual, mais natural e mais eficaz será a ajuda
espiritual que daremos para os que estão necessitados, porque o modo como nós
somos, o nosso ser, a nossa presença é muito mais importante do que o que
dizemos ou fazemos. E quando você ajuda desta forma, é extraordinário, não só
para a pessoa que está morrendo, mas também para a família.
Bodisatva:
Existe algum treinamento para quem quiser se aperfeiçoar nessa prática?
Sogyal Rinpoche:
Sim. Você pode desenvolver um treinamento chamado cuidado espiritual com
elementos emocionais e práticos. São empregados elementos da espiritualidade,
mas sempre relacionado à religião da pessoa. Até agora já treinamos cerca de 30
mil pessoas, entre enfermeiros e médicos, sobre como dar esse cuidado
espiritual no momento da morte.
Bodisatva:
Além de estar na natureza da mente, para quem tem essa realização, o que
mais pode ser feito nesse momento? Como podemos nós mesmos nos
preparar para morrer e qual a maneira mais simples de se realizar o phowa?
Sogyal Rinpoche:
Outro ponto essencial é unir a sua mente com a mente iluminada dos budas – é a
prática mais importante nesse momento, e é a que eu vou expor agora. Phowa, em
tibetano, quer dizer “transferência da consciência”. A prática do phowa é mais
poderosa e valiosa no momento da morte de todas que eu já encontrei. Eu vejo um
grande número de pessoas praticando-a com entusiasmo durante a vida. E gostaria
de enfatizar que qualquer um pode fazer essa prática. Ela é simples, mas é a
prática mais essencial que podemos fazer para nos prepararmos para nossa própria
morte, e é também a prática principal que eu ensino aos meus alunos para
ajudarem os seus amigos e parentes que estejam morrendo.
Bodisatva:
O senhor poderia descrevê-la?
Sogyal Rinpoche:
Sim. No céu à sua frente, você invoca a corporificação de qualquer verdade em
que você crê sob a forma de uma luz radiante. Escolha qualquer ser divino ou
santo de quem você se sinta próximo: para os cristãos pode ser Deus ou Cristo,
para os budistas pode ser Amitaba, que é o Buda de luz ilimitada e a deidade
mais associada com o momento da morte. Se você não se sente conectado com
nenhuma figura em especial, simplesmente imagine uma forma em pura luz dourada
no céu diante de você. O ponto importante é que considere que o ser que você
está visualizando ou que sente presente, seja a corporificação da verdade,
sabedoria e da compaixão de todos os budas, mestres, santos e seres iluminados.
Não se preocupe se você não conseguir visualizá- los claramente; apenas sinta-os
em seu coração, preencha o coração com a sua presença e tenha confiança de que
eles estão ali. Na segunda parte dessa prática, foque sua mente, seu coração e
sua alma nessa presença que você invocou. Reze a ela que por meio de suas
bênçãos, graça e orientação, por meio do poder da luz que flui dela para você,
que todo o carma negativo dos seus pecados, emoções destrutivas e bloqueios
sejam purificados e removidos. Peça para ser perdoado por todo o dano que possa
ter pensado ou causado. E que possa realizar essa prática profunda de phowa, da
transferência de consciência, e que possa morrer de uma forma boa e pacífica. E
por meio do triunfo de sua morte, que você seja capaz de beneficiar todos os
seres, vivos ou mortos. Essa é a oração. Na terceira parte, você imagina que a
presença de luz que você invocou ficou tão comovida com sua oração sincera que
responderá com um sorriso amoroso e emanará compaixão e amor na forma de raios
de luz que saem do seu coração. À medida que esses raios de luz tocam e penetram
você, eles eliminam todo o seu carma negativo, as suas emoções negativas que
são a causa do seu sofrimento. Você vê e sente que está completamente imerso em
luz e amor. Em quarto lugar, você sente nesse momento que está completamente
purificado e curado pela luz que fluiu daquela presença. Considere agora que
seu próprio corpo, criado pelo carma, se dissolve em luz. Esse corpo de luz que
você agora é voa até o céu e se funde inseparavelmente com a presença bem
aventurada daquela luz. Permaneça nesse estado de união com a presença pelo
maior tempo possível.
Bodisatva:
Como podemos fazer o phowa para quem está morrendo?
Sogyal Rinpoche:
O princípio e a sequência dessa prática para ajudar alguém que morre são
exatamente os mesmos. A única diferença é que você visualiza o Buda ou o ser
espiritual acima da cabeça de quem está morrendo. Você imagina que raios de luz
emanam em direção a essa pessoa e que purificam todo o ser dela. Aí a pessoa se
dissolve em luz e se funde nessa presença espiritual. Você pode fazer essa
prática durante a doença de um ente querido e, particularmente mais importante,
quando a pessoa estiver dando o seu último suspiro, no momento exato da morte
ou imediatamente após a respiração ter parado, antes que alguém toque o corpo,
antes dele ser tocado ou perturbado de qualquer forma. Se a pessoa que está
morrendo sabe que você está fazendo essa prática para ela e sabe qual é a
prática, isso é uma grande fonte de inspiração e de conforto.
Bodisatva:
E o que não deve ser feito quando nos preparamos para a morte?
Sogyal Rinpoche:
O grande mestre Dzogchen Dodrubchen Jigme Tenpe Nyima, que foi mestre do meu
mestre, deu o seguinte ensinamento: “Não se sinta nervoso ou apreensivo a
respeito da morte, ao contrário, tente elevar o seu espírito e cultivar um
sentimento de clara alegria trazendo à mente todas as coisas positivas e
virtuosas que você fez no passado. E sem sentir qualquer traço de orgulho ou
arrogância, celebre as suas realizações uma por uma”. O principal é o seguinte:
no momento da morte, abra mão de apego e aversão. Mantenha coração e mente
puros. E se você é um praticante espiritual, se reconheceu a natureza da mente
e praticou em sua vida, no momento da morte, lembre-se da luminosidade básica e
da clara luz surgindo. Na verdade, quando um grande praticante morre é isso que
se diz a ele. Para os meus alunos que estão no momento da morte, é esse o
conselho que eu dou, lembrem-se da natureza da mente, da clara luz. Fiz um DVD
sobre isso, que também pode ser mostrado para o praticante que está próximo do
processo de morrer. É como se eu estivesse ao seu lado, presente. Pensem em mim
e eu estarei ali.”